A arte da dupla poda: o segredo por trás dos grandes vinhos do Sudeste brasileiro
Muito além do verão: o Brasil aprendeu a virar a taça. E está colhendo medalhas.
A técnica de dupla poda da videira talvez seja o maior divisor de águas da viticultura brasileira no século XXI. Ainda pouco conhecida pelo grande público, mas reverenciada por enólogos e sommeliers que acompanham de perto a revolução dos vinhos de inverno, essa prática agrícola vem transformando regiões improváveis — como o interior de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro — em verdadeiros terroirs de classe mundial.
O que é a dupla poda?
A técnica consiste em realizar duas podas ao longo do ano:
- Uma poda de formação, realizada no verão (janeiro), que retira os brotos e impede a frutificação na estação quente e chuvosa.
- Uma poda de produção, feita no inverno (agosto), que induz a planta a produzir uvas no ciclo inverso: com colheita no outono seguinte (abril a junho), durante o clima seco, frio e ensolarado.
Essa mudança no calendário é fundamental. Em vez de colher uvas sob o calor úmido e instável do verão tropical, os vinhedos colhem em condições propícias para maturação lenta, uniforme e concentrada — resultando em uvas com mais polifenóis, taninos elegantes, acidez equilibrada e potencial alcoólico controlado. Vinhos dignos de competir com os clássicos do Velho Mundo.
Um clima que imita Bordeaux, mas com o sol de Mendoza
A dupla poda não altera apenas o calendário da videira — ela reinventa o clima do terroir.
Ao deslocar a colheita para o outono, regiões como Sul de Minas, Serra da Mantiqueira, Vale do Paraíba e Serra Fluminense experimentam algo raro no Brasil: dias ensolarados, noites frias e quase nenhuma chuva durante a colheita. É como juntar o ciclo solar da Argentina com a brisa das noites francesas — perfeito para vinhos tintos de guarda, brancos minerais e rosés sofisticados.
Vinhos premiados? Já temos muitos.
Rótulos que nasceram dessa revolução silenciosa ganham destaque:
- Maria Maria Isabela Syrah 2023 (MG) – Ouro no Decanter World Wine Awards 2025.
- Família Eloy Syrah 2023 (RJ) – Medalha de Ouro no Brazil Wine Challenge.
- Alma Gerais Sauvignon Blanc (MG) – Branco de colheita de inverno mais bem pontuado do Brasil em 2024 (AD 92, Guia Adega).
- Casa Verrone Syrah Especial (SP) – Medalha de Ouro no Decanter World Wine Awards.
Por que o Sul do Brasil não adota essa técnica?
A Serra Gaúcha e a Campanha Sul-Riograndense já têm invernos frios e secos, mas seus verões ainda são instáveis. Mesmo assim, mantém o ciclo tradicional — limitando o potencial de vinhos de alta guarda. A dupla poda demanda investimento, manejo técnico e uma mudança de paradigma: plantar e colher menos, mas colher melhor.
Vinícolas que apostam na dupla poda
Família Eloy (RJ)
Em Areal, considerada a capital da uva do RJ. Syrah 2023 premiado com ouro.
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Vinícola Maturano (RJ)
Em Teresópolis. Investimento robusto e estratégia clara na dupla poda.
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Vinícola Fortuna (RJ)
Aos pés da Serra, em Três Rios. Boutique discreta com colheita prevista para 2026.
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Minas, São Paulo, Rio: o novo triângulo de ouro do vinho brasileiro
Três Corações, São Bento do Sapucaí, Espírito Santo do Pinhal, Areal, Paraíba do Sul e Três Rios se consolidam como oásis da viticultura de inverno. Cada safra traz novos nomes e vinhos que desafiam a crítica — tudo graças a uma técnica simples, mas poderosa.
A provocação final
E se o melhor vinho brasileiro ainda nem tiver sido plantado?
Enquanto o mundo olha para Mendoza, Douro e Chianti, uma revolução tranquila — e deliciosa — está acontecendo no Sudeste brasileiro. A dupla poda é um manifesto silencioso que nos convida a olhar para o alto, para o interior, para o futuro.
Porque talvez, só talvez, o vinho mais extraordinário da sua vida ainda não esteja em uma taça. Mas já está crescendo, folha a folha, em algum vale ensolarado da Serra do Rio.